Calendário

Junho 2023
Seg Ter Qua Qui Sex Sáb Dom
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

Pesquisadoras defendem ações afirmativas de inclusão de mulheres e meninas na ciência

No último sábado, 11 de fevereiro, foi comemorado o Dia Internacional das Mulheres e Meninas nas Ciências. A data foi criada em 2016, pela Organização das Nações Unidas como forma de dar um maior destaque para o assunto e promover o debate acerca. De lá pra cá o cenário pode até ter mudado, mas ainda são necessários grandes esforços para a participação igualitária e representativa das mulheres em áreas como ciências, tecnologia, engenharia e matemáticas. Ainda que a profissão do magistério seja prioritariamente feminina, a de cientista e de pesquisadora, não. Para tentar descobrir como as cientistas vêem a questão e quais suas dificuldades, em diferentes aspectos, fomos conversar com professoras do ICB e da Enfermagem. Escrita por duas professoras universitárias e um jornalista científico, pai de duas meninas, a Comunicação do ICB publicou uma -- longa -- reportagem com o objetivo de contribuir nessa importante conscientização.

Leda Quercia“Você já foi discriminada na academia por ser mulher?” Assim começava o questionário de uma pesquisa da qual participou a professora Leda Quercia Vieira (foto 1), anos atrás. Professora titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, ela conta ter respondido categoricamente: “Não! Absolutamente!” No Departamento de Bioquímica e Imunologia isso não aconteceria, acreditava. O questionário era parte da tese de Marcel Freitas, então aluno de pós-graduação da professora Adla Betsaida, da Faculdade de Educação da UFMG, sobre discriminação contra mulheres-cientistas na universidade.

“Mas, então, ele começou a me fazer uma série de outras perguntas e eu fui respondendo vários “sim”. Eu nem sei falar quais eram as perguntas que ele fez, mas fui percebendo que existia uma situação diferente, por eu ser mulher, e que eu jamais sonhava que existissem”, diz Leda Vieira. “Fui, então, obrigada a dizer: Vou ter de voltar à primeira pergunta. E agora a resposta é sim!", conta.

Filha do professor titular e emérito Ênio Cardillo Vieira, Leda lembra seus tempos de menina, quando percorria com o pai, falecido no final de maio, os corredores do mesmo departamento onde hoje ela atua no ICB. À época, professores e professoras eram contratados sem títulos e se qualificaram após seu ingresso na UFMG. Apesar das oportunidades de formação continuada disponíveis então, entre 7 e 8 professoras do Departamento de Bioquímica e Imunologia, apenas 3 se tornaram orientadoras, ou seja, pesquisadoras do programa de pós-graduação.

Ela julga que a causa disso pode ser atribuída - parcialmente, pelo menos -, ao cumprimento de obrigações domésticas, muito atribuídas - ainda hoje - ao gênero feminino. Outros fatores como acesso à educação podem se associar também à ausência de mulheres na academia.

"PESSOAS DIFÍCEIS"
Lieselotte Jokl, era uma dessas orientadoras. “Mulher muito assertiva, competitiva, e produtiva”, lembra Leda Vieira, para quem a pioneira era adorável. Apesar disso, a professora Lieselotte só conseguiu se tornar titular pela Escola de Farmácia da UFMG, para onde se transferiu após se aposentar no ICB. Leda acredita que “ela nunca iria ser titular no departamento de Bioquímica. “Quando a mulher é assertiva, agressiva, quando faz tudo o que o homem faz, normalmente é taxada de difícil”, afirma. “Algumas, até mesmo de agressivas”, destaca. O mesmo pode acontecer em outras áreas profissionais, com mulheres mais independentes do que a maioria que alcançam projeção profissional.

Em 2018, as mulheres eram 56% do total de mestres e 54% dos doutores do Brasil. A proporção de discentes brasileiras na pós-graduação também é maior do que a de homens, conforme dados da Plataforma Sucupira (Capes/MEC). Mesmo assim, as pesquisadoras que são mães ou que continuam tendo o comportamento socialmente orientado como sendo “do lar”, frequentemente apresentam dificuldades de se desenvolver no meio acadêmico.

Participar de eventos científicos, por exemplo, pode ser muito mais difícil para as mães. Mesmo os eventos a distância, que a pandemia de SARS-Cov2 consolidou, exigem tempo e desafiam a cientista para questões naturais como com quem deixar o filho, quem leva e quem busca na escola, além dos cuidados básicos diários com as crianças, como cozinhar ou arrumar a casa.

Além de tudo isso, Leda Quércia identifica ainda a existência de um viés importante nos encontros científicos contemporâneos. Em 2022, ela conta, dos 10 conferencistas convidados para o congresso da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, apenas uma era mulher. “Na história dos congressos de bioquímica dos últimos cinco anos, pelo levantamento que fiz, menos de 10% dos conferencistas são mulheres, que dirá conferencistas negras”, alerta.

DISCRIMINAÇÃO ALÉM DO GÊNERO
viviane alvesViviane de Souza Alves (no detalhe da foto 2) é docente do Departamento de Microbiologia do ICB , onde é pesquisadora do Laboratório de Biologia Celular de Microrganismos. Durante a pandemia sagrou-se como uma referência no campo da microbiologia e também uma das mais ativas divulgadoras científicas da covid-19 no Brasil. Com ajuda de seus estudantes e participação dos professores de seu departamento ela criou perfis de divulgação acerca da covid-19 em diferentes plataformas digitais (Veja no Youtube) e até um podcast (MICROBIOS), com apoio do Instituto Serrapilheira.

Nascida em Belo Horizonte, a filha de pai baiano e mãe mineira foi criada por uma família de húngaros que veio para o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Enquanto estudante, a professora relata ter tido dificuldades por ser uma mulher negra e ter estudado em escola pública. Conta que era uma das únicas estudantes negras do curso de Biologia da UFMG. “Eu queria ser cientista e me esforcei para isso”, conta. Mulher negra, estudando numa escola pública, mesmo com apoio dado a alunos carentes prestada pela Fundação Mendes Pimentel da UFMG, ela atribui ao preconceito a necessidade de se esforçar mais do que outros na mesma condição.

Segundo a professora, aumento no número de estudantes negros na universidade é visível e ocorreu graças às politicas de cotas. No entanto, a bióloga reconhece que essas iniciativas não são suficientes para promover diversidade e equidade dos espaços intelectuais do país de formas a incluir todas as cores. "Não basta apenas as instituições de ensino terem cotas para negros, mas é fundamental apoiar a permanência desses negros", adverte. Ela conta que para se formar cientista precisou contar com o apoio de muita gente, que a acolheram desde a graduação, tanto seus orientadores quanto, é claro, seus familiares e até - então - desconhecidos. "Há necessidade de uma maior representatividade de colegas negros entre os técnico-administrativos e docentes, e até mesmo nas diretorias universitárias. E nós Mulheres, particularmente, ainda somos minoria em posições importantes. Principalmente quando a gente considera a maternidade, muitas de nós abandonam a carreira acadêmica”, enfatiza.

Sua colega Leda Vieira concorda. E destaca que as mulheres cientistas tenham filhos até a idade biológica recomendada pela medicina: por volta dos 38 anos. E ilustra isso com um relato de um caso envolvendo um casal de cientistas jovens. “O marido repetiu várias vezes que foi ao encontro científico porque a esposa perdeu no palitinho, porque se tivesse perdido estaria com o filho deles”. Comportamentos assim ainda não são a maioria mas mostram mudanças entre os homens, parceiros e igualmente responsáveis pelo cuidado dos filhos. “Eu não tive filhos, mas acho importante ter”, considera a bióloga, pensando na preservação da espécie.

De volta a Viviane Alves, ela considera a necessidade de compreender a diversidade das minorias na Universidade. De mulheres negras a membros da comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiência, indígenas - grupos injustamente sub-representados no contexto universitário - há que se estimular suas representações. Como caminhos possíveis, ela aponta as ações de extensão. “Elas são ferramentas essenciais, que aproximam a academia da sociedade, como a divulgação científica, projetos e programas, palestras, eventos, principalmente voltados para o ensino básico para crianças e jovens”, elenca. Dessa forma, considera, iniciativas extramuros poderiam incentivar a representatividade de minorias e estimular o desejo e a batalha por ações afirmativas nesse sentido, dentro da academia.

POLÍTICAS PÚBLICAS
Da Escola de Enfermagem da UFMG, a participação da professora Deborah Carvalho Malta na formulação de planos e projetos de políticas públicas - especificamente na área da saúde -, reforça a necessidade de políticas afirmativas em outras áreas, além da área da educação.

Nascida no município mineiro de Prados, aos 17 anos se mudou para Juiz de Fora para cursar Medicina. Aprovada em quinto lugar, concluiu o curso em seis anos. Em Belo Horizonte, realizou residência em Pediatria e em Medicina Preventiva e Social. Sua trajetória seguiu como médica pediatra concursada pela prefeitura de Belo Horizonte e depois ocupou cargos como de secretaria de saúde em Ipatinga. Já com dois filhos, ela iniciou o mestrado em epidemiologia e seguiu a carreira na área de saúde pública realizando doutorado em planejamento em Saúde na Unicamp. Em 2001, assumiu cargo de docente na Escola de Enfermagem da UFMG, como professora de Saúde Pública e de Epidemiologia.

Deborah Maltaa Credito Foca"É preciso mudar a sociedade”, destaca Deborah Malta, que integra o comitê científico do Global Burden of Disease (GBD) em Seattle, Estados Unidos, e coordena o Grupo de Pesquisa do GBD Brasil. Crédito: Foca Lisboa - Cedecom UFMG

Além de uma das mais respeitadas pesquisadoras na área de saúde pública no Brasil, Deborah é mãe. Seu primeiro filho também é médico, da área de Família e Comunidades, com mestrado em saúde pública e pai do seu primeiro neto, João. Já seu segundo filho é economista. A professora avalia que existe no Brasil um histórico de discriminação contra as mulheres, tanto do ponto de vista da ascensão da profissional, da ocupação de cargos de destaque, cargos de gestão, quanto também na questão salarial. “O país é extremamente machista e não se percebe como tal. Em decorrência disso, temos muitas discriminações por gênero”, diz. Para ela, a mulher precisa mostrar sua competência o tempo todo, e, muitas vezes, no mesmo cargo, acaba não tendo o mesmo destaque que seus colegas homens na mesma condição, na mesma profissão.

“E, além disso, nós temos um acúmulo de funções. As mulheres que são mães cuidam muito bem de seus filhos, da sua família, e acabam tendo dupla, tripla jornada”, destaca, lembrando ainda a necessidade que a mulher tem de saber se organizar, como manejar o seu tempo, para cuidar da família e de seus outros compromissos e desejos. “O tema do cuidado é muito afeito ao sexo feminino, né?”, observa.
Dados recentes do estudo ”Cuida-Covid: Pesquisa nacional sobre as condições de trabalho e saúde das pessoas cuidadoras de idosos na pandemia” confirmam a fala da professora Malta, no qual o percentual de cuidadoras familiares de pessoas idosas na pandemia de covid-19 do gênero feminino chega a 91%.

A grande maioria da força de trabalho na área da saúde são mulheres, especialmente na medicina e na enfermagem. Entretanto, cargos de gestão na área, como ministro, secretários de estado ou municipais, na grande maioria são homens. “Ainda que hoje, mais de 60% da mão de obra em saúde (na enfermagem pode chegar a até 80%) seja formada por mulheres, elas não são maioria na gestão”, diz professora Deborah: “isso é machismo, se associa a uma discriminação histórica, e precisa mudar”.

As mulheres precisam ser boas em organização e planejamento do tempo e de todas as suas atividades, mas mesmo assim são cobradas e recriminadas: ainda há um contingente enorme de pessoas que acredita que lugar da mulher não seja trabalhando, mas cuidando da família. O desafio é maior se a mulher tiver algum destaque em sua área de atuação. Além dos afazeres domésticos, a gestação, o cuidado com os filhos, principalmente os menores, acabam reduzindo ou até interrompendo a produção da mulher cientista. “Foi somente em 2021 que as mulheres puderam incluir em seu currículo lattes a licença maternidade”, mostra.
“A ciência te cobra muito! Muito tempo, engajamento e além disso, você tem que ter parcerias, liderança, capacidade de agregar financiamento…”, diz a professora. Isso acaba tornando o caminho muito mais tortuoso e longo. “Você acaba conseguindo ter uma produção maior, depois que algumas etapas da sua vida - de alguma forma - são cumpridas”, declara.

MACHISMO INVISÍVEL
Segundo Malta, a invisibilidade da discriminação contra as mulheres da área acadêmica ocorre como resultado do mecanismo que é próprio de todos os tipos de discriminação. Machismo, racismo, homofobia, são socialmente reprimidos de forma sutil. Existe uma espécie de “doutrinação” dirigida a camuflar essa realidade. “Tivemos séculos de convivência com a escravidão, sem que a sociedade se dê conta de que o país produziu oportunidades extremamente desiguais para os negros. Da mesma maneira, foram séculos de dominação masculina. As mulheres demoraram séculos para ter acesso a direitos, como, por exemplo, ao voto. Então, tudo o que se possa dizer dos direitos das mulheres são ainda muito recentes. E, por isso, os problemas continuam se perpetuando, muitas vezes, sem que várias mulheres ou a maioria das mulheres se deem conta dessas desigualdades e desse tipo de discriminação” esclarece.

Na universidade, Deborah Malta nota que, especialmente nos cargos de gestão, seja a diretoria da unidade, chefia de departamento, é muito mais frequente o homem tomar a liderança, um professor homem do que uma professora mulher. Temos algumas exceções como a nossa reitora, professora Sandra Goulart que está em seu segundo mandato. “Temos também algumas vitórias das mulheres também na escola de enfermagem”, conta, citando as atuais diretoras. Ela observa que, embora reeleitas pela segunda vez e a Escola de Enfermagem seja um espaço de muita liderança de mulheres, na maioria dos departamentos e demais Unidades da universidade a sub-representação das professoras em cargos de liderança ainda é uma realidade.

POLÍTICAS AFIRMATIVAS
Qual a solução para este problema? Segundo Deborah Malta é preciso mudar a sociedade. E um processo de conscientização dessa monta demanda tempo para que se possa compreender o significado de “direito à igualdade”, de gênero e racial. Daí a grande importância de políticas afirmativas e de políticas de equidade. O Sistema Único de Saúde (SUS), coloca entre seus pilares a equidade, a universalidade e a integralidade. A equidade é um princípio constitucional do Sistema Único de Saúde e precisa ser exercido cotidianamente.

Até lá ainda há uma enorme caminhada, prevê Deborah Malta. Otimista, porém, ela avalia que já demos passos importantes. Como, por exemplo, com a adoção de uma política de cotas raciais e de situação econômica. Consciente, no entanto, ela afirma que o Brasil ainda está longe de ser um país que tenha a diversidade como política prioritária. Situação que ela acredita ser mais preocupante nos tempos atuais, mas que transcende uma política partidária. “A discriminação das mulheres reflete o país desigual que ainda somos e devemos lutar pela diversidade, pela igualdade de direitos. E essa luta deveria ser assumida por todos, em especial pelas mulheres, em especial pelas minorias incluindo os povos indígenas, mas por todos”, afirma.

É muito importante que as meninas tenham direitos iguais aos meninos e que sejam reconhecidas como, enfim, portadoras de direitos iguais, conclui Deborah, declarando seu desejo de que a mulher possa caminhar na rua sem ser importunada e sem medo. “E para isso, é muito importante que nós tenhamos políticas de igualdade que apoiem as meninas nos seus sonhos, de conseguirem estudar, de conseguirem exercer toda a sua plenitude sem nenhum tipo de barreira”, defende. “Temos que mudar essa essa possibilidade para que todas possam ter seus sonhos de menina concretizados”, deseja a cientista, consciente.
(Redação: Daisy Motta Santos (PUC MG), Ivana Márcia Alves (Odonto UFMG) e Marcus Vinicius Santos (ICB UFMG), como atividade do Laboratório de Jornalismo Científico do Amerek UFMG.)