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Pesquisa analisa o processo de envelhecimento sob a ótica de idosos em situação de rua

Dados do Cadastro Único do Ministério da Cidadania (CadÚnico), de maio de 2020, mostram que, em Minas Gerais, 18.011 pessoas estão em situação de rua, 88% são homens e 80% dessa população se considera preta ou parda.Belo Horizonte concentra 9.007 dessa população. A população idosa encontra-se em uma perspectiva de crescimento contínuo, especialmente nas grandes metrópoles brasileiras. Os censos demonstram que as condições de vulnerabilidade desse grupo, associado ao empobrecimento, levaram ao aumento do número de idosos nesta situação.

Defesas de mestrado AlineCom o objetivo de compreender o processo de envelhecimento sob a ótica do idoso em situação de rua, considerando o enfrentamento das transições relacionadas ao ambiente/sociedade, saúde/doença e sua adaptação, foi realizada uma pesquisa de mestrado pela enfermeira Aline Figueiredo Camargo, orientada pela professora Sônia Maria Soares, no Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da UFMG.

A coleta de dados do estudo, de natureza descritiva, com abordagem qualitativa, ocorreu no período de julho a setembro de 2019 e constou de observação não participante e entrevistas semiestruturadas. Foram entrevistados 14 idosos que vivem em situação de rua por mais de um ano na região Centro Sul de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. “O estudo foi realizado em dois Centros de Referência da População em Situação de Rua (Centro POP), vinculados a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania da prefeitura de Belo Horizonte. Nesta regional, concentra-se 44,8% do total da população em situação de rua do município”, destaca a pesquisadora.

Aline explicaque as informações coletadas foram estruturadas em três categorias analíticas: a invisibilidade social do envelhecimento em situação de rua; o processo de transição vivenciado na rua; os desafios no cuidado a idosos em situação de rua Os idosos que participaram da pesquisa eram do sexo masculino com idade entre 60 e 75 anos. Quanto ao estado civil, oito eram separados/divorciados, cinco solteiros e um casado. Em relação à escolaridade um idoso era analfabeto, oito possuíam ensino fundamental incompleto, um ensino fundamental completo, dois possuíam ensino médio completo e dois relataram ensino superior completo. Sobre o tempo de vivência na rua a média foi de 6,9 anos com variação entre 15 meses e 40 anos. Quanto à situação financeira, 10 idosos possuíam renda fixa mensal de R$ 91,00 (Bolsa Família) e quatro idosos tinham aposentadoria ou Benefício de Prestação Continuada (BPC) com valor equivalente a um salário mínimo”, explica.

Para a enfermeira, a fragilidade dos idosos em situação de rua é muitas vezes suficiente para separá-los da sociedade. Ela pontua que a decadência os isola; pode deixá-los menos sociáveis e com sentimentos menos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros. “Isso é o mais difícil: o isolamento tácito dos velhos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a quem eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo o que lhes dava sentido e segurança. A diversidade e a heterogeneidade do envelhecimento na rua se articulam ao desenvolvimento de competências individuais necessárias para a sobrevivência. Muitos idosos conseguem lidar com a condição de forma positiva,outros não. Mesmo aqueles que conseguem lidar como processo transicional com boa adaptação são alvo da não efetivação dos direitos da pessoa idosa”.

Neste sentido, ela destaca ser imprescindível que a enfermagem auxilie este idoso em seu processo transicional mas, sobretudo, compreenda a realidade e o contexto no qual este sujeito vive e oportunize a materialização de seus direitos e da sua dignidade. “Auxiliar o idoso que vive na rua a enfrentar seus processos de transição é fundamental para o cuidado, mas é preciso buscar articulação na rede de atenção à saúde e na assistência social para a promoção da saúde desse sujeito e contribuição para o alcance da sua autonomia”.

Centros POP
De acordo com informações da Prefeitura de Belo Horizonte, os Centros de Referência da População em Situação de Rua ofertam oficinas socioeducativas (cinema comentado, documentário, ambientação, esporte, cultura popular, mosaico, artes plásticas, dentre outras), local para higienização pessoal, para lavagem de roupas e para guarda de pertences, alimentação, telecentros e atendimento socioassistencial. Constituem-se em referências de endereço para a população com trajetória de rua. Realizam atendimentos individuais e coletivos, estudos de casos, encaminhamentos a serviços e projetos de assistencial social, às políticas sociais e rede socioassistencial.

A forma de acesso ao Centro POP é a partir de demanda espontânea ou encaminhamentos do Serviço Especializado em Abordagem Social da prefeitura, com horário de funcionamento de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h.

Processo de transição
De acordo com Aline, é infactível pensar em um idoso em situação de rua sem refletir sobre como esta população sobrevive e como se efetua o processo do seu envelhecimento na rua. Ela relata que durante a pesquisa, foi possível perceber que o idoso em situação de rua atravessa o processo de transição relacionado à idade, ao ambiente e a saúde/doença de forma satisfatória e se comporta como a maioria dos idosos domiciliados.

Além disso, muitos idosos entrevistados apresentaram adaptação na administração de aspectos da vida em situação de rua, como característica específica há o fato de continuar tomando regularmente seus medicamentos, procurando os serviços de saúde com frequência para controle de suas doenças. “Alguns demonstraram que conseguiram criar uma rotina, sustentando as atividades básicas de vida diária e atividades instrumentais, tais como: dirigir-se ao albergue para dormir, manutenção da higiene corporal nos serviços disponibilizados pela Prefeitura Municipal. Poucos relataram que investem na busca por oportunidades de emprego e alguns trabalham fazendo “bicos”.

Os que não adaptaram ao processo transicional, segundo a pesquisadora, não conseguiram manter sua rotina de higienização corporal, consomem álcool e tabaco em quantidade excessiva, não procuram os albergues para o sono noturno, dormem na rua, andam durante o dia sem destino específico, entre outras características.

“Durante a pesquisa pude perceber outras características dos idosos em situação de rua: a maioria toma banho todos os dias nos equipamentos disponibilizados pelos centros de apoio, alimentam em restaurantes populares, tem patologias semelhantes ao que apresentam idosos domiciliados ou que vivem em instituições de longa permanência, como hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, depressão e problemas nas articulações. Porém, um fator que os torna ainda mais vulneráveis é prioritariamente a falta de moradia e renda” descreve a enfermeira.

Políticas públicas
Aline enfatiza, ainda, quea sociedade mantém e reproduz a ideia de que a pessoa vale o quanto produz e o quanto ganha e por isso, estes idosos, fora do mercado de trabalho e em situação de rua, tornam-se invisíveis.

“Percebemos que novos desafios estão surgindo decorrentes da transição demográfica, do aumento da longevidade, da incidência de doenças não transmissíveis e da mudança na família. O número de idosos em situação de rua cresce substancialmente e a universalização dos direitos fundamentais para esta população não acompanha este crescimento. É necessário que políticas públicas sejam criadas para contemplar os idosos nesta situação”, conclui.

O ocaso da vida 
Guillherme LimaGuilherme José de Castro Lima tem 72 anos e desde novembro de 2017 está em situação de rua. Ele é poeta e escreveu o poema abaixo:

O ocaso da vida
Olho para janela, grades da sombras do anoitecer
Que se anuncia
Neste quarto de várias camas
E um pequeno lar
Para se dormir ou...
Um banho se tomar
Quando amanhecer... Será...

Mais uma batalha a se enfrentar:
Andar pelas ruas sem rumo com estes ossos envelhecidos
E de corpo alquebrado...

As ruas fazem parte do dia, alguns às vezes nem isso fazem
Ficam pelas calçadas...

Próximas deste albergue, pois...
Estão incapazes para caminhar. O direito de suas vidas
Foram cassados pelo envelhecimento...

Ainda sim, sofrem pela descriminação
E escárnio dos mais jovens onde a integridade e o respeito se perderam...

Sem rumo em seus passos...vagueiam...
Alguns se indo
Vencidos pelo cansaço...

Que mundo é este?
Pessoas que lutaram
Pela vida e pelos seus, que a idade foi a culpa de tudo que lhe ofereceu,
Onde a moeda recebida em seus trajetos pela rua...

Tem mais importância
Que o amor negado pelos seus

Dissertação: O processo de envelhecimento sob a ótica de idosos em situação de rua
Autora: Aline Figueiredo Camargo
Orientadora: Sônia Maria Soares
Defesa: 29 de Junho de 2020, no Programa de Pós-graduação em Enfermagem